segunda-feira, 21 de julho de 2008

Fernando Pessoa


Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta e escritor português.

É considerado um dos maiores poetas de língua portuguesa, e o seu valor é comparado ao de Camões. O crítico literário Harold Bloom considerou-o, ao lado de Pablo Neruda, o mais representativo poeta do século XX. Por ter vivido a maior parte de sua juventude na África do Sul, a língua inglesa também possui destaque em sua vida, com Pessoa traduzindo, escrevendo, trabalhando e estudando no idioma. Teve uma vida discreta, em que atuou no jornalismo, na publicidade, no comércio e, principalmente, na literatura, onde se desdobrou em várias outras personalidades conhecidas como heterônimos. A figura enigmática em que se tornou movimenta grande parte dos estudos sobre sua vida e obra, além do fato de ser o maior autor da heteronímia.

Morreu de problemas hepáticos aos 47 anos na mesma cidade onde nasceu, tendo sua última frase sido escrita na língua inglesa, com toda a simplicidade que a liberdade poética sempre lhe concedeu: "I know not what tomorrow will bring... " ("Eu não sei o que o amanhã trará").




CANCIONEIRO
NOTA PRELIMINAR


    1 - Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência dum estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.


    2 - Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.


    3 - Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que "na ausência da amada o sol não brilha", e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Tem de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]



    ANÁLISE

Tão abstrata é a idéia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a idéia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

Fernando Pessoa, 12-1911



      INTERVALO

    Quem te disse ao ouvido esse segredo
    Que raras deusas têm escutado -
    Aquele amor cheio de crença e medo
    Que é verdadeiro só se é segredado?...
    Quem te disse tão cedo?

    Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
    Não foi um outro, porque não sabia.
    Mas quem roçou da testa teu cabelo
    E te disse ao ouvido o que sentia?
    Seria alguém, seria?

    Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
    Foi só qualquer ciúme meu de ti
    Que o supôs dito, porque o não direi,
    Que o supôs feito, porque o só fingi
    Em sonhos que nem sei?

    Seja o que for, quem foi que levemente,
    A teu ouvido vagamente atento,
    Te falou desse amor em mim presente
    Mas que não passa do meu pensamento
    Que anseia e que não sente?

    Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
    A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
    A frase eterna, imerecida e louca -
    A que as deusas esperam da ledice
    Com que o Olimpo se apouca.

    Fernando Pessoa


Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

    Fernando Pessoa, 1-1931

    Ao longe, ao luar,
    No rio uma vela
    Serena a passar,
    Que é que me revela?

    Não sei, mas meu ser
    Tornou-se-me estranho,
    E eu sonho sem ver
    Os sonhos que tenho.

    Que angústia me enlaça?
    Que amor não se explica?
    É a vela que passa
    Na noite que fica.

    Fernando Pessoa, 5-08-1921

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